27/09/2004 15h20 – Atualizado em 27/09/2004 15h20
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A cama de madeira que estava jogada nos fundos do quintal foi consertada e já está até arrumada, com travesseiro e lençóis novos. Foi a própria dona da casa, Maria das Graças Figueiredo Cardoso, quem resolveu colocá-la perto da porta principal, no cômodo de pouco mais de dez metros quadrados que faz as vezes de sala de estar e cozinha. É ali, entre panelas amassadas e quadros com fotos da família, que seu filho R.A.A.C., o Champinha, réu confesso do assassinato do casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, irá dormir quando sair da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor, Febem.
E isso pode acontecer antes mesmo do que Maria das Graças espera. A partir de 9 de dezembro, quando o criminoso completar 18 anos, sua libertação será apenas uma questão de burocracia. Terá permanecido à margem do convívio social por pouco mais de um ano e, pelas leis em vigor, sairá com a ficha limpa.
Champinha está internado na Febem da Raposo Tavares, em São Paulo. Daqui a um mês será removido para outra unidade, provavelmente no Tatuapé. O rodízio tem o propósito de preservar a vida do menor. Desde o crime na cidade de Embu-Guaçu, na Grande São Paulo, ele está jurado de morte pelos próprios internos da instituição. As sistemáticas mudanças de uma unidade para outra o tornam um novato onde chega. Leva sempre algum tempo até que os companheiros de reclusão descubram quem ele é e o que fez. Se por um lado Champinha está acuado, por outro vem recebendo elogios. Seu comportamento é considerado exemplar pelos diretores da instituição. É tido como um dos melhores alunos nas aulas de artesanato, apresenta avanços nas aulas de matemática e nunca se meteu em confusão. Os monitores chegam a considerá-lo um rapaz educado.
A boa conduta e um relatório recente que atesta um caso típico de retardamento mental moderado podem fazer com que a velha cama de madeira comece a ser usada já no início do ano que vem. Esse laudo técnico, emitido por um psicólogo da Febem, ainda dá conta que Champinha foi coagido a cometer os assassinatos.
A mãe do garoto está confiante. “É terrível viver sem a presença do meu filho. Rezo toda noite para que ele seja solto o mais rápido possível”, diz ela, que todos os domingo viaja 60 quilômetros para visitar Champinha na Febem. “Já preparei tudo aqui para a volta dele. Ainda não sei porque ele cometeu aquele crime. Ele é bonzinho, não entendo o que aconteceu na cabeça dele para fazer algo tão horripilante. Mas mesmo assim sou a mãe dele, não vou deixar de amá-lo.”
Dona Maria da Graças mora numa pequena casa de alvenaria na periferia de Embu-Guaçu, toda pintada de branco e verde-claro. Ela vive com os outros quatro filhos – Juvenal, Gilberto, Juveni e Tamires. Não há espaço suficiente para todos e Gilberto tem de dormir no quintal, numa rede, entre meia dúzia de galinhas e três cachorros vira-latas. O marido de Maria, Genésio Alves, pai dos cinco filhos, morreu em julho depois de um ano e meio tentando se recuperar de um derrame cerebral.
A renda da família, por volta de R$ 300, vem do trabalho de Juvenal e Juveni, os únicos que têm emprego. O filho mais velho trabalha ali perto como ajudante numa firma de advocacia, tem uma outra casa nas redondezas e contribui com R$ 200 para o orçamento familiar. Juveni está empregada como secretária, mas só trabalha aos sábados e domingos para cobrir folgas, e por essa razão ganha apenas R$ 100. Os dois quase perderam os empregos depois que o irmão chocou o Brasil ao seqüestrar os estudantes Liana e Felipe, estuprar a menina diversas vezes e matar o casal a sangue-frio com quinze de facadas.
“Meu filho nunca foi mau, ele era um doce aqui em casa”, diz Maria das Graças, que desde a prisão de Champinha toma calmantes regularmente. Acanhada e de poucas palavras, ela parece não ter muita noção do que o filho fez há quase um ano. Sabe que ele se meteu em confusão, fez coisas erradas, mas não parece ter consciência da gravidade dos crimes. “Quase morri quando soube o que ele fez algo ruim. Mas ele se arrependeu, ele me disse isso lá na Febem. Ainda quero conversar com ele direitinho para saber porque fez tudo aquilo. Mas isso vai ser quando ele estiver livre, dormindo aqui do meu lado. Aí as nossas vidas vão voltar ao normal e ser como eram antigamente. Champinha vai voltar a ser o meu neném.”
Pobre e filho de pai alcoólatra, Champinha estudou apenas até a terceira série do ensino básico. Durante boa parte da infância e da adolescência, passava o dia ajudando a mãe no roçado. Quando as convulsões que começou a ter aos 14 anos se agravaram, principalmente pela falta de medicamentos, resolveu sair de casa. Passou então a viver largado pelas ruas, pedindo dinheiro nos semáforos de Embu-Gauçu e prestando serviços a quadrilhas que atuam em desmanches de carros roubados.
Apesar de nunca ter passado pela Febem, Champinha é acusado de ter matado pelo menos uma pessoa antes do assassinato de Liana e Felipe. Sempre com um facão na cintura, ele de fato se impunha na região pelo medo que transmitia aos vizinhos. Assaltava e não ficava satisfeito em levar carteiras, bolsas e relógios. Aterrorizava suas vítimas fazendo roleta-russa – colocava a arma na cabeça da pessoa, girava o tambor com apenas uma bala e depois apertava o gatilho. Chegou a cortar parte do dedo de um comerciante que se recusou entregar o dinheiro do caixa durante um assalto.
No sábado 31 de outubro de 2003, quando saiu para caçar tatus com o amigo Paulo César da Silva Marques, o Pernambuco, em um sítio abandonado, Champinha avistou uma jovem e bela garota andando distraidamente no meio da mata. Era Liana Friedenbach, de 16 anos, a filha mais velha de uma família de classe média alta, que cursava o segundo ano do ensino médio no tradicional Colégio São Luiz. Na quinta-feira 29 de outubro, ela havia dito aos pais – o advogado Ari e a pedagoga Márcia – que passaria o final de semana no litoral norte de São Paulo com amigas do Shazit, um grupo de jovens ligados à Congregação Israelita Paulista.
Perto do local onde Liana perambulava, Felipe Caffé estava armando a barraca em que o casal passaria o fim de semana. Felipe, de 19 anos, cursava o terceiro ano do ensino médio, também no São Luiz, como bolsista. Namorava Liana havia um mês e meio e disse aos pais que no final de semana iria acampar com amigos num sítio em Embu-Guaçu.
Assim que avistou o casal naquela tarde de sábado, Champinha planejou assaltá-los. A falta de dinheiro das vítimas o motivou a ficar mais alguns momentos com Liana – que passou a chamar de “minha namorada”. Pelas 83 horas e trinta minutos que se seguiriam, vítimas e assassino viveriam um roteiro de brutalidade, violência sexual e insanidade.
Felipe foi morto às 8h de domingo. Liana acabou sendo degolada na quarta-feira, às 3h. Depois de preso, Champinha confessou os crimes à polícia, disse que era o mentor do seqüestro e afirmou, sem remorso: “Matei porque senti vontade de matar.”