30/08/2018 16h58
“Mãe de Anjo” transformou luto em luta e hoje ajuda milhares de famílias
Ela perdeu o filho aos sete anos e dedica a vida, desde então, ao bem do próximo; veja também o vídeo no final da reportagem
Gisele Berto
Quando saímos para uma reportagem não sabemos muito o que esperar. Hoje, por exemplo: quando chegamos à casa de Eliane Leão fomos recebidos com um sorriso largo e um abraço longo e apertado. Mal sabíamos que aquela visita mudaria nossas perspectivas sobre a vida.
O corpo pequeno esconde uma mulher que faz jus ao sobrenome. A vida de Eliane Leão, 42, é uma prova de obstáculos. Alguns, aparentemente intransponíveis. Mas ela continua, se fortalecendo e aceitando cada dificuldade como uma oportunidade de evoluir, melhorar e ajudar.
“Eu busco na minha vida momentos em que eu fui criança e não me recordo. Sempre tive uma vida de muitas responsabilidades, como braço direito da minha mãe e do meu pai, resolvendo problemas. E eu vejo isso como uma preparação para o que viria pela frente”, diz.
Filha de uma família tradicionalista, sendo o pai migrante de Sergipe, a menina Eliane se viu grávida aos 14 anos. “Nesse momento eu já enfrentei o julgamento da sociedade. Não tínhamos nem idade para ter uma formação que conseguíssemos nos manter. Eu estava grávida de sete meses e ainda não tinha uma roupinha. Eu sonhava com as roupinhas, com o cheiro dos sapatinhos e dos sabonetes. E eu ouvia que nossa família não ia durar 30 dias. Não ganhei nenhum garfo para começar a vida nova. As pessoas diziam para a gente se preocupar com o bebê que ia chegar, mas ninguém levava a minha nova família a sério. Diziam que não ia durar”, lembra.
UM INÍCIO CONTURBADO
Aqueles “nãos” e portas fechadas fortaleceram a pequena nova família que surgia. “Ganhei as primeiras roupinhas da Cidolina. Ela dizia que as roupinhas estavam manchadas, mas ela não sabe o quanto aquilo significou para mim. Parecia que eu tinha ido a uma loja”.
No entanto, quando o pequeno Júnior nasceu, os pais se depararam com uma nova realidade: a criança começou a adoecer. Com um mês já havia passado por uma cirurgia de hérnia. No centro cirúrgico, por conta do ar condicionado, ele saiu gripado. A gripe evoluiu para uma bronquite. A jovem mãe passou a estudar à noite, e só tinha uma moto. Devido aos deslocamentos para deixar e buscar o bebê na casa da avó, para que Eliane pudesse estudar, a criança adoecia com mais frequência, devido aos choques térmicos. Foi quando ela tomou uma decisão séria: “escolhi ficar com o meu filho e deixei a escola. Foi difícil, mas depois vi que foi a melhor coisa que eu podia ter feito. Me disseram que o meu diploma era meu filho e eu estava lá com o meu diploma”.
Quando o pequeno Júnior tinha sete meses aconteceu a primeira convulsão, em decorrência da febre das vacinas. E quando ele completou um ano e meio, Eliane, aos 16 anos, engravidou da segunda filha. “Aí foi o cheque mate. Todo mundo se afastou. Nem a ajuda que eu tive, por exemplo, durante a dieta do Júnior, dessa vez eu não tive. Já não ficava na casa da minha mãe, ela vinha em casa só uma vez por dia. Ela dizia que era uma forma de me conscientizar para eu não ter mais filhos. Mas machuca muito, a gente precisa muito de apoio. Nessa hora eu poderia ter me desestruturado”, lembra.
Eliane chegou a ouvir de uma tia que a vida dela tinha acabado, com dois filhos. “Ela me disse que eu tinha acabado com a minha vida e com a deles. E eu sabia que não, que eu ia lutar para educar meus filhos”.
A NECESSIDADE DE ALIMENTO
Nesse período, as convulsões do pequeno Júnior se intensificavam. As primeiras vieram com as febres. Depois, ele desenvolveu status epilepticus, ou Estado de Mal Epiléptico Convulsivo, definido como a ocorrência de convulsões contínuas por mais de 30 minutos ou intermitentes “Ele chegou a ter 57 crises convulsivas seguidas. Até hoje eu tenho a lembrança da cabeça batendo no chão e eu saindo correndo”.
Segundo Eliane, os exames não detectavam o problema. E, se um exame não dava nada, ela ia atrás de outros melhores. “Não existia tomografia nem ressonância aqui, só em grandes centros. As medicações precisavam ser as melhores e mais caras. Então fomos vendendo tudo o que tínhamos. Meu filho tinha ganhado um terreno do meu sogro, e nós vendemos tudo. A poupança que tínhamos para começar a nossa vida, tudo foi para tratar a doença. E chegou o momento em que começou a faltar o alimento em casa”.
Foi aí que Eliane diz ter conhecido o outro lado: o lado de quem precisa. “Eu precisava ir com ele para Campo Grande, Araçatuba, e não tinha transporte como tem hoje. Então eu dependia da família, de juntar um pouco de cada um para a passagem. E a passagem era só para mim, não tinha como pagar passagem para dois, então eu ia sozinha com o meu filho. Eu era muito jovem, precisava de alguém para me apoiar. Nesses momentos eu precisei de pessoas. Encontrei anjos, mas também encontrei muitas pessoas que não foram solidárias”.
Nesta época, Eliane conta que o Hospital não permitia acompanhante para as crianças. Havia uma visita na quinta-feira e depois só domingo havia outra. “Teve uma situação que meu filho chorou desde quinta-feira à noite até domingo. O médico mandou me chamar para eu ficar com ele. Eu não queria causar problemas, porque as outras mães não podiam ficar. Então o médico disse para mostrar para ele uma criança que tinha passado por 60 convulsões seguidas que ele ia buscar essa mãe também”.
Com os gastos elevados do hospital, Eliane conta que começou a faltar comida. “Imagina seu filho voltar do hospital, precisando se alimentar bem, e você não ter o que dar”.
O FIM E O COMEÇO
No início de 1997, a luta do pequeno Júnior, de sete anos, chegou ao fim. “A pior hora para uma mãe é a hora de enterrar. Todo mundo fala para você não ir, mas como você não vai? Você é a mãe, você embalou aquele corpinho, você cuidou. Mas quando chegou na porta eu não consegui, eu perdi a força nas pernas. Eu abracei o meu esposo e pedi para ir embora. Eu não consegui ver enterrá-lo”.
Eliane achou que a vida tinha acabado, que tudo havia sido em vão. “Mas quando eu cheguei em casa, no quarto dele, olhei para o vazio e percebi que a luta era tudo o que eu tinha. Senti que tudo aquilo tinha que ficar vivo. Que eu não tinha que ficar guardando aquela cama, aquele guarda-roupa, as roupas, os brinquedos. Eu doei tudo e vi a alegria de quem recebia. Então eu quis doar amor”.
A mãe, destroçada pela perda do filho, percebeu que tinha dois caminhos: odiar a vida ou amar a vida. “Eu escolhi amar. Escolhi fazer de uma forma que eu gostaria que tivessem feito por mim”.
Além disso, na época, Eliane e o marido tiveram que passar por outra situação de superação: como chovia muito na noite após o enterro, a outra filha do casal gritava que o pai e a mãe tinham quem ir buscar o Júnior, porque tudo estava enchendo de água. Como a menina tinha o pai e a mãe como heróis, ela achou que eles deixaram o irmão na tempestade. “Ela era muito nova para entender, então teve uma barreira com a gente. E ali eu vi que eu tinha que ser mãe de novo e apoiar a minha filha”.
A filha parou de brincar. Passou a afogar as bonecas e dizia que queria que os brinquedos fossem morar com o irmão, no céu. E nunca mais ela brincou com os brinquedos. “Minha filha amadureceu demais. Ela fez 18 anos aos quatro anos”.
Hoje, as duas filhas do casal são apoiadoras da obra social da mãe. Elaine formou-se em Serviços Sociais e a filha, Carol, é advogada.
MÃE DE ANJO
Desde então Eliane dedica-se ao Projeto Mãe de Anjo, um projeto voluntário, solidário, sem julgamentos ou preconceitos, de acolhimento, na hora da necessidade. Trata-se de um projeto de recuperação do ser humano. Não é somente levar o alimento ou a roupa, mas levar com respeito e com amor. Com o sentido de pertencimento, de se mostrar presente e dar uma palavra de apoio. “As pessoas esperam uma palavra de apoio, de incentivo”, diz.
Em todos esses anos de empenho, ela perdeu a conta de quantas pessoas já foram acolhidas, mas diz que todos os dias chegam pessoas que precisam e pessoas que doam.
Além delas, muitos outros voluntários participam dos projetos, sendo conseguindo doações, separando e embalando as coisas e levando para quem precisa. As redes sociais ajudam muito, porque Eliane divulga todos os seus projetos na rede e, assim, as pessoas conseguem participar.
“Por muito tempo eu guardei o que eu fazia. Sempre achei que caridade não se mostra. Só que a coisa foi crescendo, não tem mais como guardar”.
TEIA DE SOLIDARIEDADE
Eliane toma o cuidado de conhecer cada história de necessidade que chega até ela. Vai à casa, conversa com as pessoas, sente as necessidades e como pode ajudar. Ela conta que, assim como atende pessoas muito humildes, em barraquinhos, também acolhe pessoas que estão passando por um momento difícil pela primeira vez. “As pessoas dizem que estão com vergonha do que estão passando, e eu lembro de mim, era a minha sensação, quando comecei a vida. Tem gente que tem até um carro ou uma casa, mas não tem comida para dar aos filhos. Não dá para vender o carro ou uma casa do dia para a noite, mas o seu psicológico se degrada do dia para a noite. E isso acaba levando ao suicídio”, afirma. “A fome não espera”.
Além disso Eliane se dedica a falar com mães que perderam seus filhos, assim como ela. “Somos todos parte de uma teia do bem, uma teia de solidariedade. Já fui até para São Paulo acompanhar famílias que perderam filhos. A gente fica para dar apoio, fica no velório, e depois não deixam a gente vir embora, porque nos enxergam como um apoio, alguém que passou pelo mesmo que eles. Eu sempre lembro a gente precisa continuar a luta deles. Porque eles lutaram tanto pela vida para que? Para que a gente abandone a luta depois que eles se vão? Não! Vamos continuar a missão. Nós ficamos aqui para continuar a luta”.
O trabalho cresceu tanto que, agora, a luta é por uma sede, um espaço próprio, para sair do quartinho na própria casa onde Eliane guarda as doações. “Tem muita gente que divide o meu sonho. Precisamos de mais doadores, mais alimentos. Hoje já temos proporção para termos um espaço só para o projeto”.
“Minha religião é o amor. É Deus, é a graça. Não podemos nos dividir, temos que nos unir na graça. Eu sou evangélica, mas eu creio que onde há paz, há Deus e há amor”.
Eliane fala sobre o legado que seu filho deixou. “O Júnior era uma criança muito iluminada, muito especial. Ele amava a todos, ele era um doador. Ele me ensinou, ele me deixou a missão. Os sete anos que eu passei com o meu filho foram a minha faculdade. Se eu tivesse escolhido ficar correndo atrás de tudo eu não teria ficado esse tempo com ele, como eu fiquei. A minha faculdade foi ele, e depois eu fui só buscar o diploma”.
Eliane lembra de um fato que a marcou e escolhemos para encerrar a reportagem: “O Júnior fugia para a casa de uma amiguinha e eu dizia para ele não fazer isso porque eu ficava preocupada. Mas ele dizia ‘mamãe, não briga. Eu vou lá porque a tia Célia lê um livro para mim que diz assim ‘o Senhor é meu pastor, nada me faltará’. Chama Bíblia e não tem aqui em casa’. Eu tinha, mas estava guardada”. Desde então, a Bíblia fica aberta na mesa da sala de jantar.