Trabalhadores também estão sem receber ticket alimentação e empresa se recusa a anotar os desligamentos na carteira de trabalho, impedindo o acesso dos trabalhadores a outras oportunidades de emprego ou ao auxílio do governo federal durante pandemia
Que o salário é um direito fundamental para assegurar ao trabalhador e à sua família uma existência compatível com a dignidade humana ninguém duvida. Mas muitos empregadores insistem em marginalizar a contrapartida pelos serviços prestados por seus funcionários.
É o caso da Viação São Luiz Ltda., empresa de transporte rodoviário de passageiros, cargas e fretamento, que desde 2004 vem acumulando um rosário de irregularidades trabalhistas relacionadas principalmente ao atraso no pagamento de salários, à ausência de depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em contas vinculadas aos empregados e à resistência em efetuar a anotação de desligamento na carteira de trabalho dos funcionários dispensados.
Na última sexta-feira (12), a 2ª Vara do Trabalho de Três Lagoas determinou o imediato bloqueio de todos os bens da Viação São Luiz e de seu sócio, necessários à quitação de um passivo trabalhista estimado em R$ 1,8 milhão. O montante se baseia em 10 meses de atrasos salariais – entre fevereiro e novembro de 2019 – e na soma de depósitos de FGTS que deveriam ser realizados em contas vinculadas aos trabalhadores da matriz em Três Lagoas. A empresa tem outras duas unidades no estado – na capital Campo Grande e em Cassilândia.
O pedido de concessão de tutela de urgência, proposto pelo Ministério Público do Trabalho em dezembro do ano passado, parece trazer um certo alívio ao drama de quase 200 trabalhadores atingidos pelas inadimplências, alvo de recorrentes protestos. Sem salário, ticket alimentação e ainda vinculados à empresa, eles e seus familiares sobrevivem à custa da doação de cestas básicas e engrossam a onda de brasileiros que se viu sufocada pelo oportunismo de maus empregadores.
Estacionados na base da pirâmide da desigualdade social, muitos sequer tiveram acesso às políticas compensatórias do governo federal para o atual cenário de pandemia, como auxílio de R$ 600 oferecido aos informais de baixa renda e aos desempregados para aliviar os efeitos da vulnerabilidade à qual foram expostos. A falta da anotação de desligamento na carteira também impede a percepção de seguro-desemprego e a admissão em outros postos de trabalho.
Insistência na Justiça
Há pelo menos seis meses, o MPT vem provocando a manifestação da Justiça em torno do impasse. O último requerimento foi protocolado no dia 29 de maio.
“Os fatos demonstram o risco de os trabalhadores verem meses de força de trabalho gastos em favor da ré e de seus proprietários sem haver o pagamento da contraprestação salarial de natureza alimentar, parcela esta que é o principal motivo de os trabalhadores saírem todos os dias de seus lares e ofertarem sua energia em troca de valores que garantirão seu sustento e o de sua família”, argumentou a procuradora Priscila Moreto de Paula ainda no pedido de dezembro.
No documento, ela também faz um apelo para que a Justiça bloqueie caução ou garantia prestada pela empresa ao Estado do Mato Grosso do Sul e congele qualquer repasse de dinheiro público para a Viação São Luiz, bem como envie ofício à Procuradora da Fazenda Nacional para adoção de providências cabíveis em razão dos débitos previdenciários.
A recente decisão veio depois que a empresa foi intimada a comprovar os pagamentos dos salários atrasados, o que não ocorreu sob o pretexto de que a pandemia da Covid-19 prejudicou o seu faturamento. Porém, na contramão desse argumento, a Justiça considerou que as inadimplências remetem a um período anterior ao surto sanitário, a existência de inúmeras ações somente naquela Vara do Trabalho – todas com execução infrutífera – e, principalmente, a ampla divulgação na imprensa de que os empregados estão passando por dificuldades até mesmo de ordem alimentar.
Histórico de irregularidades
As últimas manifestações do MPT-MS protocoladas contra a Viação São Luiz são parte de um processo judicial movido em 2013. Nele, a empresa foi condenada a cumprir duas obrigações: efetuar o pagamento dos salários de seus empregados até o 5º dia útil do mês seguinte à prestação de serviços e consumar os depósitos de FGTS na conta vinculada aos empregados até o dia sete de cada mês. Para cada compromisso violado, fixou-se multa de R$ 5 mil por mês em que perdurasse a inadimplência, bastando o atraso em relação a um único empregado. A empresa foi ainda apenada ao pagamento de R$ 120 mil a título de indenização por dano moral coletivo.
Adicionalmente, em 2004, a Viação São Luiz formalizou um Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério Público do Trabalho em que já assumia aqueles encargos, além de outros, como não terceirizar os serviços de venda de passagens e registrar em carteira seus empregados. O pacto previu aplicação de multa caso algum dos compromissos fosse desrespeitado.
Porém, mesmo diante do conjunto de penalidades, a Viação São Luiz voltou a protelar o pagamento dos salários de seus empregados e a repetir as demais condutas ilícitas, que podem ser comprovadas em relatórios elaborados por auditores-fiscais após fiscalizações nas unidades da empresa entre 2016 e 2019.
Como consequência dos constantes desrespeitos às leis do trabalho, a empresa celebrou, em setembro de 2017, mais um acordo com o MPT-MS, sendo este no valor de R$ 216 mil e resultado do descumprimento, entre outubro de 2014 e setembro de 2016, das obrigações de fazer às quais foi condenada no processo judicial de 2013. A maior parte dessa quantia foi destinada recentemente ao Fundo Municipal de Saúde de Três Lagoas para o custeio de medidas voltadas à prevenção, controle e enfrentamento da Covid-19.
Reféns do descaso
Vanderson Bertalli Lara, 35 anos, é um dos motoristas afetados pelas inadimplências da empresa. Há quase dois anos atuando no transporte interestadual de passageiros, ele reivindica o pagamento dos salários referentes aos meses de fevereiro a maio, assim como dos créditos proporcionais a 16 meses de ticket alimentação. “Muita gente já não tem o que comer”, comenta o trabalhador.
Em condição crítica está outro motorista, Cleber Oliveira da Silva, 35 anos. Ele lamentou o descaso da empresa com seus trabalhadores e conta que há funcionários com 30 pagamentos de ticket alimentação atrasados.
Depois de aproximadamente cinco anos trabalhando na viação, Carlos Eduardo Vilalba Lopes, 35 anos, foi dispensado pela empresa em janeiro e até o momento não recebeu os valores correspondentes às verbas rescisórias, às férias e aos depósitos do FGTS acumulados no período. Em meio a muita dificuldade e persistência, conseguiu que a empresa regularizasse a documentação exigida para acesso ao seguro-desemprego, que vem percebendo desde março. Mesmo desempregado e enfrentando limitações em necessidades básicas, Carlos não perde a esperança em dias mais promissores.
O atraso inaugurado no começo deste ano contempla diversas categorias de funcionários da empresa – motoristas, passando por mecânicos, até aqueles que executam a limpeza das dependências. A média salarial é inferior a dois salários mínimos.
(*) Informações da assessoria do MPT
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