Com medo de serem denunciadas ao Conselho Tutelar, mães sozinhas precisam escolher entre trabalhar e deixar as crianças em casa ou perder o emprego para cuidar dos filhos; Conselho diz que só cumpre a lei
Entre a cruz e a espada. Essa é a situação de inúmeras mães em todo o Brasil nesses nove meses de pandemia, em que as escolas permaneceram fechadas para evitar o contágio pelo coronavírus.
Muitas vezes sozinhas, sem família por perto ou um companheiro para dividir a carga, elas precisam escolher – e qualquer uma das opções não será nada fácil.
“Aqui, um cuida do outro”
Em Três Lagoas, a balconista V., que prefere não se identificar, é um desses casos. Sozinha, não tem com quem deixar os dois filhos – um de 15 e outro de 4. A solução encontrada por ela foi confiar na responsabilidade do maior, que cuida do menor enquanto ela trabalha.
“A gente vive com medo de alguém denunciar, porque aí eu posso até perder a guarda dos meninos. Mas o que eu vou fazer? Se eu não trabalhar eles não comem”, contou.
Ela pediu o auxílio emergencial do Governo Federal, mas não conseguiu. “Sempre fomos só nós três. Aqui um cuida do outro”.
Ainda assim, ela diz que se as aulas voltassem nesse ano ela não mandaria as crianças para a escola antes de uma vacina ou remédio, para preservar a saúde deles. “O risco eu já corro de ir trabalhar, ter contato com pessoas. Chego em casa, me troco, tomo banho antes de ter contato com eles”, conta.
O principal medo de V., hoje, é ser denunciada ao Conselho Tutelar. “Está cheio de criança na rua e isso eles não veem, desses pais eles não cobram. Mas os meus, que estão protegidos em casa, não pode e eu corro até o risco de responder processo e perder a guarda. Mas qual a minha opção? Alguém me dá uma opção? O risco a gente corre de qualquer jeito”, diz.
Dividindo o fardo
Apesar de ter o marido ao lado para dividir os cuidados do filho, de sete anos, a auxiliar de cozinha Débora Martins da Silva, de 25 anos, precisou pedir a redução da carga de trabalho para poder ficar um dia a mais com a criança em casa. Isso impactou diretamente na renda da família.
“Meu marido é carreteiro e tem três folgas por semana. Eu tinha duas folgas, então tinha um dia que não tinha ninguém para ficar com o meu filho. Ele tem sete anos. Eu tentei deixar com vizinhos, com amigos, mas não deu certo. Então precisei pedir a redução da minha carga de trabalho para poder ficar três dias com ele”, disse.
A família não conseguiu o Auxílio Emergencial, negado a pessoas que estão trabalhando – mesmo com redução de salário. “Muita gente que precisava do auxílio não conseguiu”, lamenta. Ainda assim, ela também diz que não deixaria o filho voltar à escola caso as aulas fossem retomadas agora. “Ele não ficaria com a máscara o tempo todo, ele é muito pequeno, não poderia se cuidar.
Com a renda cortada e a rotina alterada, Débora espera que, para o ano que vem, a situação melhore.
“A Lei cobra, mas não dá opção”
A dona do restaurante Fogão de Lenha, Lucinete Ramos Garcia, já perdeu uma funcionária por conta desse problema e precisou rearranjar a escala com as funcionárias que ficaram.
“Uma das minhas funcionárias tem dois filhos, o mais velho tem 16 e ficava com a irmã menor. Ainda assim, ela foi denunciada ao Conselho e preferiu deixar o emprego. Não sei como ela vai sustentar a casa agora”, lamenta.
Como ela estava empregada, também não conseguiu o Auxílio Emergencial. “A Lei cobra, mas não dá opção”, disse Lucinete.
O braço duro da Lei
Em contato com o Conselho Tutelar, a reportagem do Perfil News questionou se não seria possível “flexibilizar” a Lei em casos específicos, especialmente em um período inédito, como este da pandemia.
De acordo com a conselheira Miriam Herrera, tudo o que o Conselho faz é cumprir a lei, que afirma que menores de idade não podem ficar desacompanhados em casa.
“As crianças precisam ficar com um responsável. Mesmo que seja um parente, ou pagar alguém maior de idade para ficar com a criança”, afirmou.
Caso o Conselho receba denúncia, o órgão vai até o local para averiguar. “Se a criança estiver sozinha na casa, a gente vai até lá, tira as crianças, traz até o Conselho e chama a mãe. Na primeira vez ela é advertida por escrito. Se houver reincidência deverá ser registrado boletim de ocorrência por abandono de incapaz”, explicou.
Mesmo durante a pandemia, não seria possível “flexibilizar” a fiscalização. “A gente não pode fazer nada, é a lei”, disse.
Uma ajuda do social
O Perfil News também procurou a Ação Social, por meio da secretária Vera Helena Acioli.
Segundo ela, apesar da inflexibilidade da Lei, é necessário analisar caso a caso.
“Tem que ver caso a caso, não é desse jeito. É uma situação complexa. Isso vai para o Judiciário, que vai analisar as situações”, afirmou.
Segundo Vera Helena, a ajuda que a Ação Social consegue proporcionar no momento, enquanto os serviços de acolhimento não estão funcionando, é o oferecimento do alimento, para que a família ao menos receba uma cesta básica para manter o sustento. De acordo com ela, desde o início da pandemia já foram entregues 15 mil cestas.
“Não somos nós que vamos tirar os filhos de suas famílias, especialmente porque nós entendemos a situação e somos solidários a essas mães. Todos nós estamos passando por isso”, disse.