Lideranças de 14 países se reuniram na III Assembleia da Rede TICCA da América Latina, em Costa Rica. Na ocasião, representantes de comunidades tradicionais denunciaram uma série de perigos ambientais que põe em risco a integridade de pessoas e da biodiversidade.
Um grupo de 62 representantes de 14 países latino-americanos, que fazem parte do Consórcio de Territórios de Vida agrupados na Rede TICCA, denunciou que várias regiões do continente estão severamente ameaçadas por perigos ambientais (desmatamento, mineração a céu aberto, economia azul, conservação sem pessoas, construção de enormes represas hidrelétricas e produção descontrolada de salmão, etc).
Na Assembleia, realizada em janeiro, os líderes das organizações que fazem parte do Consórcio TICCA se reuniram durante três dias, no cantão de Garabito, província de Puntarenas, onde destacaram os graves impactos dessas atividades – entre outras questões – que alteram a reprodução dos ecossistemas, geram altos níveis de poluição, e também ameaçam as fontes de renda das comunidades como, o ecoturismo ou a pesca artesanal com baixo impacto sobre os recursos marinhos.
Representando a Rede TICCA Brasil, Lilian Pereira que é coordenadora do Componente Modos de Vida da Wetlands International Brasil e Mupan – Mulheres em Ação no Brasil, destacou a relevância dos debates ao longo do encontro levando em consideração o cenário nacional e o aumento no interesse de povos e comunidades brasileiras em se autodeclarar TICCA.
“Nos últimos anos, diversas comunidades têm sofrido com uma série de impactos que influenciam diretamente nos seus modos de vida. O conceito TICCA, junto ao processo de autoproclamação e registro vem como uma ferramenta a mais na proteção desses territórios de vida e pode atuar com denúncias as pressões, criar mecanismos de defesa além de buscar apoio, inclusive, internacional para mitigar esses impactos”, enfatiza ela que complementa, “infelizmente esse aumento está atrelado ao fato dessas comunidades estarem sofrendo cada vez mais pressão. A busca por reconhecimento pode ser vista também como um pedido de socorro dessas comunidades, como uma fonte de fazer suas vozes e direitos serem ouvidas. Para nós, se desenha um desafio ainda maior, que é entender o que essas comunidades têm passado e como a gente pode orientar para um processo que converse com essas expectativas. E como consórcio, fortalecer esses povos, suas lutas e com mecanismos de respostas mais rápidos”, pontua.
Holly Jonas, coordenadora Internacional do Consórcio ICCA, disse que a assembleia na Costa Rica foi uma oportunidade para assegurar que os principais resultados de acordos internacionais como a Convenção sobre Diversidade Biológica -incluindo uma abordagem baseada nos direitos humanos para a conservação da natureza – sejam fundamentadas nas prioridades de autodeterminação dos povos indígenas e comunidades locais, que são os verdadeiros guardiões e defensores dos territórios de vida.
“A Assembleia de TICCA América Latina é uma janela para promover uma abordagem que destaque o trabalho das comunidades na defesa dos recursos em seus respectivos territórios em seus países. Na região, ainda temos enormes desafios, especialmente por parte dos estados e governos para fornecer soluções na defesa desses direitos humanos, a fim de fazer a diferença, mas acima de tudo, que haja respeito pelos modos de vida locais”, disse Jonas.
A sigla TICCAs significa “Territórios e Áreas Conservadas por Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais e Locais”. Um conceito internacional criado pela ONU Ambiente com a finalidade de fortalecer o empoderamento das comunidades frente à preservação da sua memória, cultura, identidade e, ainda, garantir a proteção de suas terras em caso de ameaças externas.
Bolívia, Colômbia, Brasil, Equador, Peru, Argentina, Paraguai, Chile, México, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Panamá e Costa Rica estão entre os 14 países que, por meio de lideranças da Rede TICCA, marcaram presença na assembleia. Evento que contou com o apoio logístico da CoopeSoliDar R.L.
Exemplos dos perigos
Heidy Orozco, membro da Associação Nuiwari, que trabalha em Nayarit, México, na bacia do rio San Pedro (um dos mais importantes sistemas de mangais do país), disse que o estuário de San Pedro é a principal fonte de rendimento para as comunidades da parte norte do Estado.
“O rio San Pedro atravessa a Serra Madre Ocidental e está agora ameaçado pela construção de uma mega barragem hidroelétrica. Esse projeto será construído num lugar que é o território dos povos Naayeri e Wixarrika, que são nativos do México. Levantamo-nos em defesa desses territórios, porque as margens superiores do rio fazem parte de mais de 15 locais sagrados de povos nativos. Além disso, se esta enorme barragem fosse construída na foz do rio, afetaria toda a floresta de mangues e seria um “ecocídio”. As mega-barragens deslocam comunidades dos seus territórios, e a violência normalmente aumenta porque as pessoas vindas do exterior chegam a pequenas cidades de 900 habitantes, que são subitamente invadidas por cinco mil pessoas -como neste caso- que vêm trabalhar na construção”, disse Orozco.
Nelson Millatureo, da Associação de comunidades dos territórios Williche-Chono da Região de Aysén na Patagônia, no sul do Chile, revelou que a produção de salmão teve um impacto “severo” na indústria pesqueira local, gerando elevados níveis de poluição.
“As explorações de salmão chegaram em nossos territórios, para poluir uma grande quantidade de recursos naturais. É por isso que estamos integrados na Rede TICCA para defender os nossos espaços de vida. A indústria do salmão não foi bem regulamentada pelo Estado chileno, que concedeu concessões sem realizar os respectivos estudos dos impactos que se geraram no interior dos fiordes e canais. Os resíduos de salmão, que geralmente contêm antibióticos e outras substâncias perigosas para o ambiente e para as pessoas, são a principal causa de danos. Além disso, não pagam os impostos correspondentes no território e não assumem a responsabilidade pelos impactos que geram. Não é uma indústria amiga do ambiente, mas sim uma indústria que nos deixa doentes, pelo que exigimos que o Estado chileno assuma a responsabilidade de cuidar destes ecossistemas na Patagônia”, disse Millatureo.
Camila Nay, da Bolívia, que é membro da Mancomunidad dos rios Tuichi, Beni e Quiquibey, salientou que as comunidades daquele país estão a sofrer as consequências devastadoras da atividade mineira, por parte de empresas estrangeiras que utilizam substâncias como o mercúrio para realizar seu trabalho.
“Sofremos a contaminação causada pelo uso de mercúrio, que na nossa região atingiu mais de 30 partes por milhão. Na Bolívia temos 36 nações de povos indígenas, sem mineração já havia contaminação, então o que nos espera com esta atividade? Antes, isso era feito em escala menor, de forma artesanal com uma bandeja, mas agora chegaram dragas gigantes à região, trabalhando dia e noite e isso contamina o peixe que comemos todos os dias, que é a nossa principal fonte de alimento, isso já foi denunciado perante as Nações Unidas”, disse Nay.
Além dos problemas ambientais, a assembleia abordou outras questões como: a integração de novos membros, o Quadro Global de Biodiversidade (COP-15) e as Alterações Climáticas, entre outros assuntos. Foi também realizado um debate para propor ações concretas da região, para avançar na defesa destes importantes Territórios da Vida, no âmbito da implementação do Quadro Global de Biodiversidade, recentemente aprovado em dezembro do ano passado, na COP15 em Montreal, Canadá.
Sobre o Consórcio ICCA
A sigla TICCA, em português, significa, Territórios Indígenas e Áreas Conservadas por Comunidades Locais, ou, em inglês, ICCA (Indigenous Peoples’ and Community Conserved Territories and Áreas). Uma certificação internacional reconhecida pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Trata-se de uma autodeclaração que pode ser realizada por uma comunidade tradicional (indígena, quilombola, ribeirinha, de terreiro, extrativistas, entre outras) que reconhece valores sociais, ambientais e econômicos de um território, da comunidade e de seu sistema de governança.
O Consórcio ICCA nasceu a partir do movimento de promoção da equidade na conservação das décadas por volta da virada do milênio. Foi oficialmente estabelecida na Suíça em 2010 como uma associação internacional ao abrigo do Código Civil suíço. É uma associação baseada em membros, governada por uma Assembleia Geral e um Conselho, e apoiada por um secretariado internacional: www.iccaconsortium.org
No Brasil, a agenda TICCA tem sido promovida pela Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal), desde 2015, organização de referência para TICCA em território brasileiro, em parceria com a Wetlands International e apoio da Synchronicity Earth, com o objetivo de dar visibilidade ao papel das comunidades tradicionais e indígenas na conservação dos territórios, recursos naturais e na manutenção dos modos de vida.
Fonte: Rede TICCA América Latina/colaboração Mupan – Rede TICCA Brasil