21/09/2004 14h46 – Atualizado em 21/09/2004 14h46
Num apartamento de um quarto na 103 Sul, quadra nobre de Brasília, mora a tetraneta do alferes Joaquim José da Silva Xavier. Num apartamento de um quarto, com piso de tacos velhos e carcomidos, araras coloridas decorando a parede e um único sofá rasgado de dois lugares, está a história da mulher que lutou, durante 18 anos, para ser reconhecida como parente do mártir da Inconfidência Mineira, morto na forca em 21 de abril de 1792.
Num apartamento de um quarto, com um aquário no centro da sala, onde nadam duas tartarugas solitárias — Tico e Teco —, Lúcia de Oliveira Menezes, de 59 anos, vibra com a decisão inédita da 2ª Turma Suplementar do Tribunal Regional Federal da 1ª Zona. ‘‘Hoje (segunda-feira), eu acordei chorando de alegria. Às vezes, acho que é um sonho’’, diz ela, com a voz embargada.
A tetraneta de Tiradentes passará a receber, do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), pensão especial, instituída por lei em 1996, de natureza honorífica e indenizatória. Trocando em miúdos: por ser parente do mineiro que morreu enforcado por defender ideais de libertação do povo brasileiro, Lúcia receberá dois salários mínimos: R$ 520.
Solteira, sem filhos, Lúcia é a filha caçula de um auxiliar de almoxarife do Departamento Nacional de Estradas e Rodagem (DNER). Chegou a Brasília com os pais e as duas irmãs mais velhas, há 42 anos, logo depois da inauguração da capital. Em 1967, o pai morreu. A família passou a viver da pensão do velho Lucilo Medeiros de Menezes. Lúcia, sem profissão, dedicou-se a cuidar da mãe, que vivia em cadeira de rodas e morreu aos 95 anos, em 1998.
Num apartamento de um quarto, Lúcia e a mãe Isabel viviam com a pensão do auxiliar de almoxarife. Hoje, atualizada em R$ 1.295. Na decisão do TRF, na semana passada, o entendimento de que mesmo ganhando a pensão do pai, a tetraneta de Tiradentes poderia receber a indenização especial, já que ‘‘não há dispositivo legal que vede a acumulação de pensão de natureza distinta’’.
O primeiro pagamento da nova pensão, previsto para outubro, terá destino certo. Lúcia vai pagar as duas contas atrasadas de luz, em torno de R$ 80. E o último condomínio, no valor de R$ 160. ‘‘Vivo momentos difíceis da minha vida. Esse dinheiro nunca foi tão importante pra mim’’, admite.
Patriota, Lúcia recebeu o Correio com um broche da bandeira do Brasil colocado no lado esquerdo da blusa. Mostrou condecorações. Fotos com pessoas importantes da política nacional. E a melhor das homenagens: a Medalha da Inconfidência, dada pelo ex-governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo, em 1998. ‘‘É a história da minha família. Nem todo mundo tem a honra de ter nascido de um herói da Pátria’’, envaidece-se.
Desde criança, Lúcia aprendeu que a história do Brasil estava mais perto do que contavam os livros. E bem mais real. ‘‘Cresci escutando a façanha do meu tetravô’’, diz. E como lutou, desde pequena, para provar que tinha o sangue do homem que virou mártir de um ideal. ‘‘Quando estudava, ninguém acreditava que eu era parente dele. As pessoas riam de mim. Era difícil me fazer acreditar…’’
Desfile militar
O tempo passou. Lúcia ficou adulta. Envelheceu. E a história que aprendera desde criança nunca saiu da sua cabeça. Virou, mais do que nunca, defensora das coisas do Brasil. Exaltou a bravura de seus heróis. E o feito do seu tetravô.
Todo 7 de Setembro, Dia da Independência, Lúcia vestia-se de verde-e-amarelo. Durante muito tempo, passou despercebida entre a multidão que assistia aos desfiles. Mas alguma coisa mudou. ‘‘Nos oito anos em que o presidente Fernando Henrique ficou no poder, fui convidada para a parada militar. Ia para a tribuna de honra’’, conta, saudosa e com orgulho indisfarçável.
No último desfile, Lúcia ficou em casa, em lágrimas. ‘‘Pedi, liguei pra assessoria do presidente Lula e não tive chance. Na última hora, me disseram que eu não podia ir porque o palanque estava cheio. Viria a comitiva do presidente de Portugal. Só me restou chorar diante da televisão’’, lembra.
Lúcia muda de conversa. Não quer mais lembrar o 7 de Setembro que passou. Vai até o aquário no meio da sala e tira uma de suas tartarugas. Coloca na mão e acaricia. ‘‘Elas são a minha companhia. Tem dia que sinto falta de uma pessoa pra conversar, mas logo vejo que tenho elas duas.’’
Perto do aquário, num porta-retrato, foto da mãe Isabel. ‘‘Dediquei minha vida pra cuidar dela’’, diz, emocionada. Na parede, um certificado de linhagem, concedido pelo Instituto de Genealogia de Minas Gerais, atesta: ‘‘Tetraneta de Eugênia Joaquina da Silva e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes’’.
Condecorações à parte, Lúcia volta à vida real. ‘‘Felicidade pra mim é ter paz no coração. E sabe como se tem paz? Respeitando e aceitando as pessoas como elas são’’. Num apartamento de um quarto da 103 Sul, mora uma mulher que ainda acredita em salvadores da Pátria. E fez da história deles a sua própria e única história.
Fonte:Correio Braziliense